Levei uma naifada 07/04/2012
"Podias era aproveitar e fazer reportagem para o Blog A Certeza da Música. Que tal? Boa Ideia, não?"
Esta "naifada" aparece-me escrita num mail do amigo João Nuno em resposta à minha sugestão para um concerto no Centro Cultural de Ílhavo que na impossibilidade de me acompanhar não hesita e espeta-me sem piedade.
Com o devido respeito pela Áurea os meus caminhos nesse dia estavam definitivamente enviesados para A Naifa.
Fiquei sem resposta, não conhecia quase nada da banda a não ser o que a minha própria intuição musical me sugeria acerca da sua sonoridade e que viria a comprovar-me mais uma vez não me trair gratuitamente.
Como seria possível escrever sobre um concerto duma banda a qual não conhecia, apesar de o desejar, e que nem sequer conseguiria identificar em tempo real qualquer tema?
O "medo" levou-me a responder algo que pudesse desviar-me dessa responsabilidade mas não terei sido convincente e poucos minutos depois tinha novo mail habilmente a insistir de forma tal que não tive como recusar. "Estou feito".
Cheguei, como habitualmente, 15 minutos antes da hora e o número de lugares disponíveis no parque de estacionamento levou-me a temer o pior.
As poucas pessoas dentro do CCI confirmaram as primeiras suspeitas, fui sozinho e andava por ali de mãos nos bolsos a fazer tempo, a olhar para o tecto e para os posters nas paredes da minha sala de concertos favorita.
Um sorriso estampado na cara duma pessoa é mesmo para mim, não há nada como reencontrar um amigo dos trilhos da música para o desconforto desaparecer, felizmente a sala acabou por ficar digna mas ainda assim diria que com apenas 20% de ocupação, a banda merecia muito mais.
A Naifa arranca o concerto sem uma única palavra para o público até ao quarto tema, um simples “obrigado”, mas ofereceu toda a essência, toda a alma e uma intensa honestidade sonora que convenceu a plateia presente, não havia lugar para lugares comuns da popular atitude de palco tão apreciada pelos portugueses.
Eu confesso que prefiro assim mas nós em geral temos qualquer coisa de patológico-bailarico que concerto sem palminhas e "como é que é Ílhavo?" é mau concerto.
Não houve nada disto, praticamente só poemas cantados e trechos instrumentais ousados que resultam em pleno e que produzem um resultado único.
Luís Varatojo assume neste projecto a guitarra portuguesa desprendido de preconceitos e hesitações de não ser a sua escola, a personalidade vincada deste instrumento é tal que qualquer crítico não conseguirá deixar de colar a palavra Fado às etiquetas que catalogam a banda e provavelmente seria muito fácil bater no ex-Peste & Sida, ex-Despe & Siga, ex-Linha da Frente pela ousadia.
Varatojo utiliza uma guitarra portuguesa devidamente artilhada de efeitos que habitualmente são usados em guitarras eléctricas mas sem a descaracterizar uma única vez. Esta seria a minha primeira grande curiosidade, como seria a prestação de um homem do punk com o sagrado instrumento nacional?
A segunda curiosidade e não inferior à primeira seria o baixo, Sandra Baptista assumiu-o nesta nova vida d'A Naifa, a ex-Sitiados, a única acordeonista verdadeiramente bonita sem verrugas no nariz que conheci, responde de forma competente desfrutando cada minuto do concerto, ora de pé, ora sentada na ponta do palco da bateria de Samuel Palitos, em momento algum lhe senti desconforto ou hesitação (e estive atento).
Mais uma inegável algema de rótulos é a voz de Maria Antónia Mendes, Mitó, o seu timbre acusa Alfama do fado vadio. Sensual, vivida, sofrida, doce, melancólica, forte e frágil que me deixou rendido e de nó na garganta ao pressentir lágrimas e confirmada voz trémula quando pela primeira e única vez neste concerto o luto é objectivado nas palavras dedicadas no final de Gosto da Cidade/Mariana e Chamily, a sétima canção do alinhamento, à memória do mentor João Aguardela falecido em Janeiro de 2009 aos 39 anos. Conheci-o pessoalmente em 1996 num concerto em Coimbra em que os Icon Vadis abriram para os Sitiados e Xutos & Pontapés, foi dos ilustres músicos que conheci o que mais gostei como ser humano. Até eu fiz o meu "luto" neste concerto.
Um'A Naifa vale pela homogeneidade mas Samuel Palitos é para mim o mais dotado tecnicamente, bateria e programações estiveram simplesmente brilhantes. O ex-Censurados, ex-Sitiados foi sempre sensível às dinâmicas e silêncios, sempre subtil na intensidade da sua prestação nada a despropósito num instrumento onde é muito fácil manchar pelo exagero. Esteve muito bem e não consegui evitar dizer-lho.
Concerto marcado profundamente pelo novo disco "não se deitam comigo corações obedientes" (grande título) mas não abdicando de canções de trabalhos anteriores como Monotone, Dona de Muitas Casas ou Esta Depressão que me Anima.
N'A Verdade Apanha-se Com Enganos, Mitó convidou a sala a cantar esta simples frase por 2 breves ocasiões e naturalmente a prestação do público na segunda foi mais confiante como que grato.
Quem esteve presente gostou obrigando ruidosamente a banda a 2 encores, De Cara a La Pared, que foi o primeiro tema do primeiro encore, surpreendeu-me pelo efeito utilizado por Varatojo que no backstage me explicaria que essencialmente trata-se de um Delay invertido que fez com que a guitarra portuguesa soasse a acordeão.
O já clássico Señoritas terminou um excelente concerto de um projecto que de facto é muito mais para ser tocado ao vivo do que escutado em CD para que o brilhantismo nos renda por completo. A sala agradeceu de pé.
Portugal está em dívida para com esta banda e depois do concerto não consegui evitar um certo mal-estar de arrependimento por não ter forçado ou provocado conhecer este projecto mais cedo… mais vale tarde que nunca.
Ainda a pedido do João Nuno fiquei para uma tentativa com sucesso de ida ao backstage para que o CD comprado fosse assinado pelos músicos.
Em jeito de despedida deixo aqui o link do que me ocorreu escrever em Janeiro de 2009 quando em trágico espanto li no rodapé da minha TV o anúncio da morte do João Aguardela.
Texto de João Paulo Santos
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