quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Bons Sons Cada Vez Melhores...

Uma amiga comum fez com que o João Carlos Lopes descobrisse este blog, do qual gostou.
Posteriormente enviou-me um mail a declarar esse gosto e partilhou comigo um texto escrito por ele, sobre o Festival Bons Sons, para o Jornal Torrejano.
Gostei do tanto do texto que assim que o li, fiz-lhe logo um pedido/convite para que me autorizasse a sua publicação, ao que ele respondeu positivamente.
Assim, é com todo o prazer que hoje vos apresento o referido texto. Espero que sintam o mesmo gosto ao lê-lo que eu senti e, desde já, agradeço ao João Carlos pela a sua disponibilidade e colaboração.

...No Melhor Festival da Música Portuguesa

Vamos directos ao assunto: o Festival Bons Sons, que se realiza de dois em dois anos em Cem Soldos, ali a seguir ao Casal da Fonte e antes de Tomar, é o maior e o melhor festival de música portuguesa. Em termos conceptuais, é o mais sólido e criativo, na inovação e na própria programação musical, de todos os festivais de música que se realizam em Portugal.
Já tudo se disse sobre a invenção de transformar uma aldeia, ela toda, no cenário em que decorre o festival, por onde se semeiam os palcos (pelos largos, pelas eiras, pela igreja), por onde se desenvolvem actividades (antigas lojas, tabernas ou barracões), de como ruelas e travessas, casas, pátios e quintais se abrem à comunidade festivaleira e tudo isto assente numa narrativa que começou a ser escrita em 2006 e parece já uma tradição: o festival é um pequeno momento em que a utopia assenta arraiais naquela abençoada aldeia e se descobre na doçura dos gestos, na tranquilidade dos olhares, na calma e na gentileza com que toda a gente trata toda a gente - uma pequena cidade sem muros e sem ameias, como cantou um dia José Afonso, sempre tão presente neste festival apesar de não ter sido contemplado como patrono de um dos palcos, como seria previsível e justo.
Este ano, o festival não podia ter começado melhor: primeiro, chegaram os “El Naan” com a tradição densamente telúrica e enérgica do planalto castelhano.
Foto Bons Sons
Mas a noite inicial, uma das que marcariam o festival, foi de “A Naifa”, que arrebatou a multidão com um desempenho poderoso e que deixou toda a gente atordoada, perante novas e antigas canções, novas e antigas histórias envolvidas numa batida irresistível em diálogo com a pouco canónica guitarra portuguesa que caminhava ora em pequenas ladainhas de sabor fadista ora em vigorosos acordes e dissonâncias, sempre a um ritmo alucinante. Depois, nos dias que se seguiram, foi o desfilar de um cartaz verdadeiramente incrível, com cantautores, músicos e grupos de todas as áreas e tendências da música portuguesa, daquela que emerge deste surpreendente momento de criatividade e inovação que podemos encontrar para onde quer que olhemos.
Momentos bonitos viveram-se com Celina da Piedade, com António Zambujo, que ficou sinceramente surpreendido pela entusiástica recepção que teve de gente tão nova (“A minha alma está parva”, deixou cair), alegres com os “You can’t win Charlie Brown” ou com “Os Paus”, prodigiosos folguedos com os “Pé na Terra” já quase no fecho; ainda no sábado, as honras foram para Maria João e Laginha, mas o melhor estava para vir, no domingo e último dia.
Primeiro foi Aldina Duarte, que ultrapassou os limites do que se julgava possível em entrega e comunhão com um público que sabe amar a sua arte tão singular. Depois, o festival fecharia portas com um memorável concerto de Vitorino.
Um Vitorino que parece cantar agora melhor do que aos 40 ou aos 50 anos. O cantor do Redondo, aqui e ali atiçando o público com românticos apelos à luta pelos valores do “Sul”, que cantou inicialmente para definir a matriz política do alinhamento, entremeou as suas canções com boleros, modas e fados, aqui crónicas de Lobo Antunes, ali gritos de paixão revolucionária, as pistolas da Maria da Fonte ou as bombas anarco-sindicalista de há mais de cem anos, sempre naquele registo em que Vitorino o faz, a revolta elegante servida num cálice de vinho tinto, e o público, que o conhece de ginjeira, condescende, cúmplice.
Momentos de grande celebração, quase íntima, foram as quatro ou cinco canções do Zeca que Vitorino levou a peito, num registo sempre muito forte, mesmo na roupagem musical. De resto, de todos os “monstros sagrados” da música portuguesa (Sérgio Godinho, José Mário Branco, Fausto, Palma até certo ponto, e o próprio Vitorino), é o alentejano o mais “afonsino” de todos, assumindo-se como fiel discípulo do “mestre”.
Cem Soldos veio quase abaixo de emoção quando a assistência entoava, em uníssono, o refrão de “Traz outro amigo também”, enquanto o relógio da torre da capela fazia troar as 12 badaladas da meia-noite numa cadência que se diria combinada. Já “A morte saiu à rua” tinha sido outro momento de grande fervor afonsino, mas Vitorino, que a sabe toda, guardou a “Queda do Império” e a “Menina estás à janela” para dar as últimas e o pessoal, gente maioritariamente muito nova, começava enfim a abandonar o largo da aldeia em estado de graça e de transcendência.
Num festival perfeito e quase sem mácula, em que um dos vários trunfos consiste no começo dos concertos às horas marcadas, há coisas menos conseguidas? Certamente. Algumas apostas para o palco da capela revelaram-se desajustadas. Uma coisa é ouvir Lula Pena diante do altar, outra é cair-se em erros de casting como foi, por exemplo, “Abaixonado” num local que, embora veja a sua sacralidade temporariamente suspensa, não deixa de continuar a pedir expressões de alguma contenção e de exigir a devida adequação nas linguagens artísticas, sonoras e estéticas.
Não fosse o “Bons Sons” uma espécie de demanda da perfeição estética em todos os domínios que se somam para nos oferecer, de dois em dois anos, um intervalo de felicidade plena nestes tempos de chumbo que não adivinhámos.

 João Carlos Lopes
JORNAL TORREJANO – TORRES NOVAS

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