quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Lhasa de Sela por Filipe Lascasas


Há dias, após partilhar um tema de um álbum ao vivo da Lhasa, que eu não sabia que existia, surgiu uma conversa no facebook que me lembrou o desgosto de nunca a ter visto ao vivo. O Filipe contou-me que a tinha visto no Teatro Aveirense, é claro que não podia deixar perder a oportunidade e, de imediato, o desafiei para que fizesse um texto, a contar como foi.
Já sabia da sua qualidade de escritor, mas, ao receber ontem o seu texto, nunca pensei que me viesse a comover, como creio que quem o ler, também ficará.
Sem mais delongas, fiquem aqui com o que ele escreveu:


Lhasa de Sela
Por Filipe Lascasas

Vivemos na era mais rápida de sempre, dos transportes ao consumo, dos sentimentos aos valores. E agora mesmo, há “scroll down’s” por fazer, outros blogs a visitar, notícias (falsas?) por comentar...
Por isso, aviso quem gosta de finais felizes ou de “chegar rápido ao destino” que esta história não é para vós: é lenta e acaba mal; a “Artista principal” morre no fim.
Tenham uma boa noite e sejam felizes (rápido).
Quanto nós - os mais lentos (por sorte ou teimosia) - dir-vos-ei que a minha história com Lhasa é uma história de amor com alguém que nasceu (e morreu) na Era errada.


Tive a oportunidade de conhecer Lhasa de Sela a 9 de Julho de 2004 no Teatro Aveirense.
À semelhança do ilustre autor deste Blog, nasci melómano mas, contrariamente a ele, mantive-me são. Evitei “doenças” como a da sua frenética demanda arqueológica ou futurista por tudo o que pode ser Arte em forma de música. Em vez de enólogo musical, mantive-me alguém que sabe apenas apreciar um bom vinho quando o prova.

Foi uma outra doença que apanhei que me levou a conhecer Lhasa de Sela... Precisava encher páginas de um jornal da cidade e caiu-me no estirador um convite para o concerto da banda desta senhora.
As perguntas que lhe fiz ficaram perdidas num tempo em que não havia “arquivos digitais” e o papel ocupava muito espaço em prateleiras.
Ainda bem.
À semelhança de muitas fotografias não tiradas no “nosso tempo” (por não existirem smartphones), essas perguntas e a minha (falta de) preparação para a entrevista apenas tornariam memórias mágicas numa constatação óbvia do meu amadorismo.
No entanto, nessas memórias (mágicas ou não) lembro-me que estava inspirado e ela havia sido a Musa da minha inspiração. Lembro-me de um concerto mágico quase todo feito de sombras no palco e jogos de luz pensados ao milímetro, ou, então, programados apenas pela inspiração de um Génio. Lembro-me da voz doce, penetrante e omnipresente da Lhasa. Lembro-me de como, música após música, ela me baralhava sobre a sua origem - alternando entre musicas em diferentes idiomas e outras com vários em simultâneo.

Só depois da entrevista publicada, fiz o meu trabalho-de-casa...

Lhasa de Sela (New York (Big Indian), 27 de Setembro de 1972 - Montreal, 1 de
Janeiro de 2010) foi uma cantora estadunidense, radicada no Canadá.
A sua ascendência era de um lado mexicana e de outro americano-judeu-libanesa. Filha de um professor não convencional (que percorria os EUA e o México, difundindo o conhecimento) e de uma fotógrafa. Assim passou sua infância, de forma nómada, junto com seus pais e suas três irmãs.
Sua obra musical mescla tradição mexicana, klezmer e rock e é cantada em três idiomas : espanhol, francês e inglês.”

Mas já era tarde. Ela estava já num avião e eu tinha de fechar a redação.
Só aí a compreendi e o que era isso de ser um “Cidadão do mundo”: A clarividência completa de que somos (mesmo) uma só Especie, com Bons e Maus, Criminosos e Justos, Corruptos e Honestos... Todos à mistura, todos Iguais.

Só depois compreendi que a Incompreensão não a incomodava... Ela sabia (e isso perguntei-lhe) que a sua música “nos ficava” - perturbando-nos nisso mesmo; dispensando qualquer escrutínio.
Como não? Afinal escrevia e cantava no único idioma comum da nossa espécie: o do Amor.

Bebemos depois um copo de vinho Alentejano num sítio junto à Ria que se chamou “Botirão”. Falei mais do que ouvi, partilhamos sonhos e despedi-me dela (sem saber que era para sempre) à porta do hotel “As Américas”.
Recebi um e-mail da Lhasa em 2008, a questionar (essencialmente) se eu já tinha conseguido cantar as minhas músicas ao Mundo.
Na resposta à minha, escreveu apenas:

“Uma coisa é certa: ao mundo já tu pertences, escreve agora só para ti.”

Depois, Lhasa morreu-me; a 1 de Janeiro de 2010.

Filipe Lascasas

P.S.: Assim fiz. Mas hoje foi só para ti, ao som de “Con toda Palabra”.

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